domingo, 19 de dezembro de 2010

Julgamentos no Teatro: O Mercador de Veneza


A peça shakesperiana conta a história de Antônio, que, para ajudar o pobre amigo Bassânio a cortejar à jovem Pórcia, aceita figurar como fiador num empréstimo de 3 mil ducados que Bassânio realiza com o judeu Shylock.

Como todo o dinheiro de Antônio está investido em mercadorias transportadas por navios, Shylock, maliciosamente, propõe que Antônio assine um contrato no qual, se não for feito o pagamento em determinada data, o credor poderá cortar uma libra de carne de qualquer parte do corpo do devedor. Confiando que antes da data prevista terá muito mais do que o dinheiro a ser emprestado, Antônio aceita as condições. A peça contrapõe o Cristão Antônio, com bons sentimentos, ao usurário Shylock, judeu, que nutre certa raiva de Antônio, exatamente pelo fato de este não emprestar dinheiro a juros, o que acaba desvalorizando seu negócio.

Quando Jessica, filha de Shylock, foge com Lourenço, levando grande soma em dinheiro e jóias de seu pai, sendo o casal ajudado por Bassânio, aumenta a raiva de Shylock por Antônio.

Ao ser questionado para que lhe serviria a carne de Antônio, Shylock responde:

“Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servirá para alimentar minha vingança. Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por que ? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos ? Os judeus não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões ? Não ingerem os mesmos alimentos, não se ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos ? Se nos espetardes, não sangramos ? Se nos fizerdes cócegas, não rimos ? Se nos derdes veneno, não morremos ? E se nos ofenderdes, não devemos vingar-nos ? Se em tudo mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste ? Vingança. Se um cristão ofender a um judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão ? Ora, vingança. Hei de por em prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.”

Bassânio, já nas graças de Pórcia, recebe notícias de Antônio, que seus navios naufragaram e o judeu Shylock apesar dos constantes apelos em sentido contrário, exige o cumprimento da letra. Pórcia pede que Bassânio vá em socorro de seu amigo e ofereça a Shylock o dobro do valor da dívida. Ela lhe dá um anel, como símbolo do amor dos dois, e pede a ele que nunca se desfaça do bem, senão isto significaria a morte do amor deles (sua empregada, Nerissa, também faz o mesmo com Graciano). Quando Bassânio e Graciano partem. Pórcia deixa Jéssica e Lourenço tomando conta de sua casa e diz que irá agurdar seu amado num mosteiro, em oração, junto com Nerissa. Elas partem.

Na presença do juiz, Shylock se mostra inflexível. Antônio se mostra conformado com seu destino, afinal se o Direito de Shylock for negado, significaria que as leis de Veneza não têm valor, o que abriria um precedente perigoso. Shylock rejeita a proposta de Bassânio, de ter o dobro do valor, e exige justiça. O Doge espera por Belário, um jurista sábio ao qual ele consultou sobre a questão. Ele não comparece, mas manda uma carta, recomendando um jovem Doutor de Roma, chamado Baltasar (na verdade, é Pórcia disfarçada. Nerissa também se encontra disfarçada de escrivão). Pórcia diz que, de fato, tem o judeu direito à prestação constante na letra, mas tenta convencê-lo a aceitar três vezes o valor da dívida. Shylock é irredutível. Pórcia, então, decide em favor do judeu, mas ressalva que ele só pode tirar uma libra de carne, sem retirar qualquer gota de sangue de Antônio, já que o contrato não menciona sangue. Caso contrário, todos os bens e terras de Shylock passarão para o Estado. Shylock, então, aceita receber três vezes o valor da dívida, ao que Pórcia nega, dizendo que, já que ele não aceitou receber o dinheiro antes, só tem direito ao estipulado no pacto.

“Podes ver o texto. Reclamaste justiça. Fica certo de que terás justiça, talvez mesmo mais do que desejaras.”

Derrotado, Shylock faz menção de ir embora, mas Pórcia diz que a lei tem outras pretensões a respeito. Pelo fato de ele – um estrangeiro – ter atentado contra a vida de um dos membros daquela comunidade, metade de seus bens passa para o ofendido e a outra metade para os cofres públicos. Além disso, a vida do ofensor fica à mercê do Doge. O Doge lhe concede o Direito à vida. Antônio propõe, primeiro, que Shylock se torne Cristão; e, segundo, que a metade dos bens que caberia aos cofres públicos seja perdoada, contanto que Shylock assine um documento, comprometendo a passar a quantia correspondente ao homem que desposou sua filha e com ela fugiu, assumindo também Antônio o compromisso de fazer o mesmo com a metade que com ele ficará. O Doge diz a ele que se não concordar com os termos do acordo, retira o perdão concedido. Shylock acaba aceitando.

Antes de partir, Bassânio e Antônio insistem em agradecer, de alguma forma, ao douto Baltasar (Pórcia). Esta pede o anel que dera a Bassânio, pedindo a ele que dele nunca se desfizesse (Nerissa também pede a Graciano, como pagamento por seus serviços, o anel que lhe dera). A princípio, eles negam. Mas após insistência de Antônio, cedem.

Ao chegarem à casa, eles explicam o ocorrido. As esposas se mostram decepcionadas a princípio, mas eles se surpreendem quando elas lhes mostram os anéis. Elas dizem que, para recuperá-los, tiveram que dormir com o jurista e seu escrivão, o que deixa Bassânio e Graciano irritados. Mas, depois elas esclarecem que elas é que eram o jurista e o escrivão. Pórcia ainda diz a Antônio que três de seus navios chegaram ao porto.

Rudolf Von Ihering, em seu "A Luta pelo Direito", considera que foi cometida uma injustiça contra Shylock. Que se negasse, desde o início, validade ao título, por conter disposição contrária à moral, mas o juiz reconheceu eficácia à letra, frustrando sua execução através de um estratagema infame, qual seja, cortar a carne sem tirar o sangue, o que é impossível.

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