sexta-feira, 6 de maio de 2011

Caso Concreto: Prescrição Retroativa (ou O Tempo como Pena)

A persistência da Memória, de Salvador Dalí

Em dezembro de 2009, bem no comecinho da carreira (mal tinha completado um ano de advocacia), foi realizado um mutirão de júris pelo Poder Judiciário (na ocasião, eu até era entusiasta dessa prática; hoje já sou contrário, por causa da desorganização e por este tipo de iniciativa prezar por rapidez nos julgamentos, ao invés de qualidade). Como há uma deficiência de defensores públicos, a OAB convocou alguns advogados para atuar voluntariamente nestes júris. E lá fui eu. Cada advogado teria a colaboração de estudantes de faculdades locais, servindo como estagiários.

Um dos casos que peguei foi o de um homem de idade avançada (cerca de 60 anos quando do julgamento), acusado de ter assassinado um morador de rua em 1992. Ele alegou legítima defesa desde o início e não havia porque discordar da tese. Quando do crime, não havia qualquer indicação inicial de autoria, eis que ele se apresentou voluntariamente na delegacia para contar sua história. Além disso, não havia testemunhas. O que o levou a júri foi sua própria confissão.

Só um dos jurados entendeu que houve legítima defesa. Os demais acompanharam a promotoria, no sentido de que, se é que houve legítima defesa, houve excesso. Interessante é que houve verdadeira inversão do ônus da prova neste caso, porque o júri aceitou uma versão de que o réu não comprovou que houve legítima defesa. A acusação é que teria que provar que não houve. Enfim, é o famoso "in dubio pau no reu".

Interessante é que mesmo perdida a batalha, não significa que a guerra esteja perdida também. E eu diria que nem a batalha foi perdida. Apesar da condenação, o fato de ele ter passado todo o processo em liberdade e o quantum da pena aplicada (7 anos e seis meses) permitiriam a ele passar longe do regime fechado. Como aqui em Alagoas, a colônia agrícola São Leonardo, local de cumprimento de penas em regime semi-aberto, encontra-se desativada, o condenado cumpre a pena em casa, tendo que comparecer ao juízo mensalmente.

Porém, as estagiárias chegaram a uma conclusão que, pela quantidade de júris que realizei naquele dia, me fugiu: A prescrição reatroativa. Já havia passado mais de 12 (doze) anos, do recebimento da denúncia até a publicação da pronúncia (sequer houve publicação da pronúncia, então o prazo continuava a fluir). Como a pena era menor que 8 (oito) anos, o fato prescrevia retroativamente em 12 (doze) anos.

Disse a elas que teríamos que esperar 5 (cinco) dias, porque a alegação de prescrição retroativa exige que a sentença transite em julgado para a acusação primeiro. Como não tinha procuração nos autos, protocolei petição em nome próprio, explicando os motivos que me levavam a peticionar e salientando que prescrição era matéria conhecível de ofício. Transcrevo, abaixo, os argumento utilizados na petição, suprimindo, por motivos óbvios, o nome do réu:


EXCELENTÍSSIMO SR. DR. JUIZ DE DIREITO DA 8ª VARA CRIMINAL DA CAPITAL





(...)

O réu foi condenado, pelo crime capitulado no art. 121, caput, do Código Penal Brasileiro, à pena de 7 anos e 6 meses de reclusão, a ser cumprida em regime semi-aberto. Na ocasião, apenas a defesa apelou da decisão.

Com a aplicação de pena in concreto, percebe-se que a punibilidade do réu encontra-se extinta, dada a ocorrência da chamada prescrição retroativa, prevista no art. 110 do CPB.

Mesmo que V. Exª não reconheça a capacidade postulatória deste advogado para realizar qualquer tipo de manifestação na presente causa, é medida de justiça que considere e analise o teor desta petição, haja vista que a prescrição pode ser reconhecida de ofício. Ademais, o único propósito do requerente é contribuir com o judiciário alagoano, o mesmo motivo que o levou a participar dos mutirões, bem como a comoção pela situação do réu, um senhor humilde que há 17 (dezessete) anos vem respondendo a este processo, injustamente, na singela opinião deste advogado.

Pois bem, sendo a pena aplicada inferior a 8 (oito) anos, dá-se a prescrição em 12 (doze) anos. A denúncia foi recebida em 22/03/93 (conforme anotação “recebo a denúncia”, na própria exordial acusatória, à fl. 02). A decisão de pronúncia foi prolatada em 18/02/2005 (fls. 86-90), sendo que não consta a data de sua publicação, apenas a da ciência do Ministério Público e do defensor público que assistiu o réu à época. Aquele manifestou sua ciência em 03/05/2005, enquanto este o fez em 19/05/2005 (ver fl 90). O réu foi intimado da sentença via carta precatória no dia 26 de abril de 2005 (fl. 93). Portanto, à ausência de publicação da sentença no DOE, a prescrição não foi interrompida. E mesmo que se considere como marco interruptivo a data da ciência do réu ou de seu defensor, já havia transcorrido lapso temporal superior a 12 (doze) anos do recebimento da denúncia.

A jurisprudência é pacífica no sentido de que não basta a prolação da sentença de pronúncia como marco interruptivo da prescrição, devendo a mesma ser publicada:

TENTATIVA. REDUÇÃO NA FRAÇÃO MÁXIMA. REDIMENSIONAMENTO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. PRESCRIÇÃO DECLARADA. Considerando que o réu se encontrava completamente embriagado no momento do assédio à vítima, sendo que sequer chegou a se despir ou mesmo tirar as vestes da companheira, bem como que não apresentou sinais perceptíveis de excitação, verifica-se que restou muito longe da consumação do delito, o que autoriza a redução da sanção privativa de liberdade na fração máxima de 2/3. A par disso, tendo transcorrido prazo superior a quatro (4) ano entre a data do recebimento da denúncia e a data da publicação da sentença de pronúncia, deve ser declarada a extinção da punibilidade do delito, pela prescrição retroativa, com fulcro nos arts. 107, IV, 109, V, e 110, §1º, todos do Código Penal. APELO PARCIALMENTE PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70025822826, Oitava Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Danúbio Edon Franco, Julgado em 10/09/2008)

Como a sentença condenatória foi proferida no dia 28/11, o prazo para interposição de recurso por parte da acusação, que é de 5 (cinco) dias, iniciou no dia 30/11, esgotando-se no dia 04/12, o que autoriza o reconhecimento da prescrição, mesmo havendo apelação por parte da defesa, já que tal reconhecimento extingue a punibilidade, beneficiando o réu.

Diante do exposto, requer que V. Exª, reconhecendo a ocorrência da prescrição retroativa entre a data do recebimento da denúncia e a publicação da sentença de pronúncia, publicação esta que não ocorreu, declare extinta a punibilidade do réu XXX (nome suprimido por questões éticas).

Nestes Termos,
Pede e Espera Deferimento.

Maceió, 07/12/2009

O Juiz da 8ª Vara Criminal, José Braga Neto, encaminhou os autos ao MP para ofertar parecer. Pasmem: O processo ficou mais de um ano com o promotor (talvez inconformado em ter que dar um parecer reconhecendo a prescrição). Demorou, mas saiu, em março deste ano, o tal parecer. E, no início deste mês de maio, o magistrado, reconhecendo a tese defensiva, extinguiu a punibilidade do réu.

O que me sensibilizou - e às estagiárias - na causa foi a idade avançada e a falta de condições financeiras do réu. Se ele cometeu um crime, o tempo foi o maior castigo, porque se responder a um processo já é uma punição, pela mácula que gera na pessoa, que se dirá no caso de processo que iniciou em 1992 e só agora chegou ao fim!!! Culpado ou não, ele cumpriu uma pena, embora a prisão tenha sido psicológica.

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