Suzane Von RichtofenHá alguns meses atrás, a mídia noticiou fortemente a pretensão de Suzane Von Richtofen, condenada em 2002 pelo assassinato de seus pais, Manfred e Marísia, de pleitear a progressão para o regime semi-aberto, no qual o preso passa o dia nas ruas e volta à unidade carcerária à noite.
Sentenciada a 39 (trinta e nove) anos de reclusão, Suzane possui o tempo necessário para a progressão, que é de 1/6 da pena (atualmente, o tempo necessário para progressão, nos casos de crimes hediondos, é de 1/3, se o condenado for primário; e 3/5, se for reincidente). Além disso, como trabalhou na penitenciária feminina, dando aulas de inglês às outras detentas e na oficina de costura, teve abatimento na pena.
A Administração da Penitenciária atestou que Suzane apresentou bom comportamento desde que iniciou o cumprimento da pena.
Entretanto, o Ministério Público apresentou parecer contrário ao pedido de progressão, sustentando que, não obstante o alcance do tempo necessário, Suzane era manipuladora e dissimulada, constituindo um risco para a sociedade, especialmente para seu irmão, que detém a herança da família
Suzane foi submetida a exame criminológico. O tal exame, altamente subjetivo, concluiu o mesmo que o Promotor de Justiça, e foi o suficiente para embasar a decisão da juíza da Vara de Execuções Penais, que indeferiu o pleito de progressão. Vale trazer à colação alguns trechos da decisão:
"À toda evidência, o simples atestado de boa conduta expedido pela Administração Penitenciária não se mostra suficiente para aferir o mérito daquela que, pela violência do crime cometido, é pessoa presumivelmente perigosa.
Ademais, o bom comportamento pode ser intencional, por conveniências próprias, visando justamente a obtenção de benefícios em sede de execução penal. Imprescindível, pois, que se faça uma análise global e aprofundada, sopesando-se elementos objetivos e subjetivos relevantes, até porque o retorno de um condenado para o seio da sociedade não pode ser encarado como mera experiência ou aposta, visto que o insucesso da medida, a cargo do Poder Judiciário, fatalmente produzirá consequências desastrosas e irreparáveis."
Comentando estes primeiros trechos, nota-se que Suzane está sendo novamente julgada pelo ato (e sempre será), cuja análise deveria ficar no passado, quando da prolação da sentença. A magistrada ainda alega que soltar um condenado no seio da sociedade é arriscado; ocorre que, independentemente do quantum já cumprido, nunca se terá certeza da periculosidade de ninguém. Trata-se de elemento que não é ínsito à pessoa, está na cabeça de quem a julga. Não é exercício da judicância, e sim de vidência. Continuando a esmiuçar a decisão, temos:
"Submetida a exame criminológico, constatou-se, notadamente na avaliação psicológica, que Suzane é bem articulada, possui capacidade intelectual elevada e raciocínio lógico acima da média. Mas embora se esforce para aparentar espontaneidade, denota elaboração, planejamento e controle em suas narrativas. Note-se que tais aspectos só puderam ser evidenciados por intermédio de estímulos por ela não conhecidos, diante dos quais apresentou dificuldade em articular adequadamente seus conteúdos psicológicos, colocando-se então em postura defensiva, com utilização de procedimentos primitivos e pouco elaborados.
Também restou evidenciado na súmula psicológica que Suzane tende a desvalorizar o outro, estabelecendo relações de forma a atender exclusivamente às suas demandas pessoais e atribuindo pouca importância ao ser humano. Some-se a isso forte característica narcisista e facilidade em perder o controle emocional diante de situações que geram desconforto pessoal.
Prognoses tão negativas , aferidas por profissional técnico presumivelmente capacitado, só vêm reforçar a convicção de ser assaz prematura e perigosa a reinserção da detenta no convívio social neste momento, ainda que a conclusão pericial lhe tenha sido favorável em alguns aspectos, valendo lembrar que o exame criminológico é tripartido, ou seja, constituído de avaliações distintas - psiquiátrica, psicológica e social - cada uma em sua órbita de atuação."
Nesta parte da sentença, percebe-se que Suzane foi considerada dissimulada ao planejar suas respostas, como se todos nós não fossemos recomendados a isto: "pense bem antes de falar", dizem nossos pais.
Também foi dito que Suzane tende a desvalorizar o outro. Parem o mundo que eu quero descer!!! Nossa, Suzane é egoísta!!! Como ela ousa ? O que a maioria das pessoas faz quando um mendigo se aproxima de seus carros para pedir uns trocados ? O modo como os governanates tratam seus súditos miseráveis não seria, também, uma forma de desvalorização do outro ? Sendo assim, Suzane não só estaria apta a conviver em sociedade, já que a sociedade é essencialmente egoísta e narcisista, como estaria apta a se candidatar a algum cargo eletivo. O grande problema, como diria Jean Paul Sartre, é que "o inferno são os outros". Mas voltemos ao teste de popularidade, no qual Suzane foi reprovada:
"Por relevante, ateste-se que às fls. 227/228 consta que a sentenciada chegou para a avaliação social demonstrando postura de fragilidade, mas com discurso pronto; se ateve a uma linha de raciocínio e não se perdeu em nenhum momento da entrevista, sempre com objetividade, apesar de em alguns momentos haver expressado emoção, chegando ao choro, mas sem profusão.
Evidente que se preparou para emocionar e nesse propósito conseguiu até se emocionar e chorar em momentos oportunos."
Antes de comentar este ponto da decisão, necessário se faz esclarecer que o objetivo da postagem não é se posicionar a favor ou contra Suzane, nem tratar acerca do assassinato de seus pais. A sentença condenatória transitou em julgado e ponto. A própria Suzane não recorreu do veredicto, apenas do quantum da pena aplicada. A crítica que se faz nestes escritos é em relação à subjetividade (quase irracional) do exame criminológico e de como o Direito se deixa levar pelo discurso da psicologia, passando por cima até de fatores objetivos.
Aqui, vemos que o mal de Suzane foi não se perder em sua entrevista, manter a coerência em suas palavras. Estranho, não ? Ainda mais quando a exame mostra que se trata de uma moça bem articulada com capacidade intelectiva acima da média. Geralmente, os juízes caçam contradições nas declarações dos presos; neste caso, a juíza critica a linearidade nas declarações da sentenciada. Ademais, Suzane cometeu um grande e imperdoável erro, e não falo apenas do parricídio: Ela chorou, sem profusão, mas chorou. Será que o prognóstico seria outro se ela não tivesse chorado - talvez um "a entrevistada demonstra frieza, pois não derramou nenhuma lágrima ao falar do crime" - ou se ela tivesse chorado escandalosamente ? Certamente que não. O resultado, independentemente das reações de Suzane, já estava pronto. Não se vê a personalidade dela, e sim a impressão que o crime e o apelo midiático deixaram na mente do entrevistador. O pai da psicanálise, Sigmund Freud, já dizia que "quando João me fala de José, sei mais sobre João do que sobre José". O behaviorista Skinner sustentava que "a personalidade é mera ficção, só existindo na mente daquele que observa".
Passemos à parte final da decisão, onde a magistrada volta a julgar Suzane pelo crime cometido contra os pais e descreve seu bom comportamento carcerário como mero fingimento parea obter a progressão (o que será que a magistrada esperava de Suzane ? Que ela abatesse as colegas de cela a cacetadas também ? Será que o teor da sentença tem a ver realmente com Suzane ou com a frustração da magistrada pelo comportamento da sentenciada não ter correspondido ao que se esperava dela, daí a taxá-la de dissimulada ?):
"Tamanha banalização do valor da vida, sobretudo em se tratando da vida de seus pais, toca as raias da anormalidade e fala por si só, dispensando maiores comentários.
Enfim, em que pesem os esforços da combativa defesa, o certo é que a conduta irrepreensível apresentada pela sentenciada durante o tempo de encarceramento não pode ter o peso que se lhe buscou atribuir, mesmo porque outra coisa não se poderia esperar dela, sobretudo diante do perfil que demonstrou ao ser psicologicamente avaliada.
Com efeito, com todo seu tirocínio bem sabia para obter benefícios em sede de execução penal, além do tempo de pena cumprida, necessitaria unicamente do bom comportamento carcerário. E sendo esta sua principal meta nesta fase da vida, parece bastante claro que tenha reunido todos os esforços para atingi-la.
Por óbvio, sempre teve consciência da hediondez do delito que praticou e do repúdio generalizado que o mesmo gerou no meio social. Sendo assim, a única chance que teria de ser novamente aceita em sociedade era convencer a todos, começando pelos responsáveis por sua custódia, frise-se - que por trás da criminosa "ocasional, posto que induzida", há uma garota frágil, dócil e prestativa, de fácil convívio e incapaz de fazer mal a quem quer que seja.
Ademais, com toda sua cultura, classe social e educação, não haveria mesmo qualquer razão para apresentar comportamento indisciplinado ou desrespeitoso no cárcere.
O certo é que se está diante de uma jovem de rara inteligência, com firmeza de foco e determinação na obtenção de seus propósitos, dentre eles o de matar seus próprios pais. Feito isso, e passado algum tempo de inevitável encarceramento, conseguiu obter conceito favorável na esfera da Administração Penitenciária e com isso busca agora retornar ao convívio social, ainda que gradativamente, o que lhe permitirá dar seguimento a projetos que certamente a motivaram à prática criminosa no passado e a conduziram, desde lá, até aqui."
No primeiro trecho grifado, temos a prova daquilo que foi afirmado logo no início da dissertação: Suzane foi julgada pela segunda vez. O que levou a juíza a indeferir o pedido de progressão foi a natureza do crime, que, nas palavras da própria magistrada, dispensa maiores comentários. O resto foi pura retórica e subjetividade. Já no segundo trecho em negrito, atentemos para novo exercício de vidência por parte da julgadora, ao prever que Suzane pode vir a atentar contra a vida de seu irmão. Não são estas as palavras usadas, mas a idéia está implícita.
É fato que os discursos psiquiátrico e psicológico exercem controle sobre o direito. Foucault bem mostrou esta dominação em seu "Eu, Pierre Rivierre, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão". O grande problema é que o discurso psicológico, apesar de se pretender técnico (e até tem seu quê de técnico), é altamente subjetivo, mormente se contaminado pelo apelo popular e da mídia. É o olhar do outro sobre alguém, mas nunca a descrição real deste alguém. E nós sabemos que, se tomarmos qualquer pessoa como referência, as opiniões serão as mais diversas possíveis. O grande problema de Suzane é que o crime envolve um manto de negatividade na pessoa do criminoso, que impede que ela seja vista com bons olhos, impede até que ela seja vista como uma pessoa. O crime impede que voltemos o foco à pessoa do criminoso e que enxerguemos sua personalidade, mormente em uma sociedade dividida de forma maniqueísta. É cômodo separar as pessoas em boas e más, pois ninguém vê (ou ninguém quer ver) o mal em si, só nos outros.