quarta-feira, 15 de abril de 2009

Robert Louis Stevenson




"E aconteceu que o sentido dos meus estudos científicos, que me conduziam à mística e às coisas transcendentes, suscitou e derramou imensa claridade nesse caráter de guerra permanente entre o bem e o mal em que me debatia. Em cada dia, as duas partes da minha inteligência, a moral e a intelectual, atraíam-me mais e mais para essa verdade, cuja descoberta parcial fora em mim condenada a tão pavoroso naufrágio: que o homem não é realmente uno, mas duplo. Digo duplo porque o estado do meu conhecimento não vai além desse ponto. Outros poderão prosseguir, outros exceder-me-ão nestes limites; mas atrevo-me a pensar que o homem será um dia caracterizado pela sua constituição multiforme, incongruente, com suas facetas independentes umas das outras. De minha parte, segui infalivelmente numa só direção. Na minha própria pessoa habituei-me a reconhecer a verdadeira e primitiva dualidade humana, sob o aspecto moral. Depreendi isto das duas naturezas que formam o conteúdo da consciência, e se eu pudesse corretamente dizer que era qualquer das duas, seria ainda uma prova de que eu era ambas. Desde muito tempo, ainda antes que as minhas descobertas científicas começassem a sugerir-me a simples possibilidade de semelhante milagre, aprendi a admitir e a saborear, como uma fantasia deliciosa, o pensamento da separação daqueles dois elementos. Se cada um, dizia eu comigo, pudesse habitar numa entidade diferente, a vida libertar-se-ia de tudo o que é intolerável. O mau poderia seguir o seu destino, livre das aspirações e remorsos do seu irmão gêmeo, a sua contraparte boa; e esta caminharia resolutamente, cheia de segurança, no caminho da virtude, fazendo o bem em que tanto se compraz, sem se expor à desonra e à penitência engendradas pelo perverso. Constitui uma maldição do gênero humano que esses dois elementos estejam tão estreitamente ligados; que no âmago torturado da consciência continuem a digladiar-se. De que modo poderiam ser dissociados ?" (em O Médico e o Montro. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 72)

Nenhum comentário:

Postar um comentário