Pois é, caro leitor. Este blogueiro não é Regina Casé, mas realizou a proeza de percorrer Alagoas inteira, para comparecer em uma audiência na cidade de Água Branca, município do extremo oeste do estado. Como disse uma grande amiga minha, também advogando neste caso, "atravessamos a calcinha" (referindo-se ao desenho do estado no mapa), numa viagem de 4 horas, saindo de Maceió às 5:00 da manhã. Só para se ter uma idéia do itinerário, vejamos a linha azul, que representa o nosso trajeto, no mapa abaixo:
Maceió - Água Branca: Cerca de 4 horas de viagem
Falemos, então, do caso: Uma senhora, que não podia deixar de assistir o Faustão ou o Gugu, resolveu subir no telhado de casa para ajeitar a antena. Acabou levando uma queda. A Unidade de Emergência mais próxima fica na cidade de Arapiraca, que dá umas 2 horas de viagem. Passou por diversos procedimentos cirúrgicos, inclusive cirurgia plástica. Entretanto, terminou perdendo os movimentos do braço. Ela processou um dos médicos do hospital, o cliente em questão, por erro médico, exigindo uma indenização astronômica de R$ 50 mil. A peça inicial colocava o meu cliente como um verdadeiro açougueiro, afirmando que ele teria puxado um ferro do braço da mulher, como quem puxa um cordão, causando-lhe dores inimagináveis. Até aí tudo bem, se não fosse um pequeno detalhe: Não foi aquele médico que fez os procedimentos nela. Foram vários outros, mas este sequer tocou nela. Nem um exame de papanicolau ele fez nela. A função dele no hospital era apenas preencher os relatórios de alta, entregues aos pacientes.
Na ocasião da contestação, nós até juntamos cópia do prontuário médico completo, contendo os nomes de todos os médicos que a operaram, mas o juiz preferiu se manifestar apenas durante a audiência de instrução e julgamento. Poderia ter nos poupado a viagem e apreciado logo a preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, o que regularizaria o andamento processual, até para evitar prejuízo para a parte autora, mas não o fez. E lá fomos nós para Água Branca, "Terra de Gente Boa".
A audiência começou pontualmente. O juiz da comarca, Dr. Ferrrrrdinando Scremin Neto (um moço bastante tranquilo, por sinal), começou a analisar os autos. A parte autora estava com uma tipóia no braço, mas sem seu advogado, que chegou atrasado. Enquanto ele não chegava, o magistrado perguntou às partes se havia possibilidade de conciliação, ao que o meu cliente respondeu que não: "Eu nunca vi essa mulher na minha vida, Doutor". Nessa hora, uma das pessoas que estava acompanhando a autora disse a ela que tirasse a tipóia que envolvia seu braço, para impressionar o juiz. Só então o advogado dela chegou, dizendo que já há algum tempo estava no fórum (só se ele estava no telhado olhando a antena, que nem a cliente dele fazia quando caiu, porque nós chegamos uma hora antes da audiência e nada).
Doutorrrrrr Ferdinando Scremin Neto, juiz da comarca de Água Branca
O juiz explicou toda a situação para o advogado, após analisar detidamente o prontuário, e lhe advertiu, com aquele sotaque curitibano: "Doutoooooorrrrrrr, o senhorrrrrr preste atenção nos documentos quando forrrrrr entrarrrr com a ação, Doutorrrrrrrr". Diante deste pito, e da vergonha que estava passando diante da cliente, o advogado se enforcava com sua gravata, numa aflição de deixar Tiradentes no chinelo. Pois é, engana-se quem pensa que a última pena de morte por enforcamento ocorreu na cidade de Pilar, na época da escravidão. Ocorreu hoje, na cidade de Água Branca.
O juiz começou a avaliar o laudo pericial realizado na mulher, laudo este que resultou inconclusivo, cheio de dúvidas acerca da ocorrência do erro médico. E começou a solicitar esclarecimentos técnicos ao meu cliente. Resultado: De réu, ele passou a perito.
Vendo que a coitada da autora estava em prantos, sem entender patavinas desse colóquio médico-jurídico, o juiz começou a explicar para ela que não poderia condenar um médico que não a havia operado. O advogado dela, então, interrompeu o Doutooorrrrr para dizer que "o pleito não poderia prosseguir por ilegitimidade passiva da parte para a causa". Para uma agricultora de Água Branca, isso é grego. Ela deve ter pensado: "o peito (?!) não pode prosseguir ? Não, Doutor, o meu problema não é no peito não. É no braço".
Detalhe para o troféu de motocross que havia na mesa do juiz, bem como o fato de ele ter mencionado praticar paraquedismo (olhe, Doutoorrrr, se eu der entrada na Unidade de Emergência de Arapiraca, o Senhorrrrr me atenda, porrrrr favorrrrrrr). Também, para um juiz novo que mora em Delmiro Gouveia, sertão de Alagoas, onde não tem nada para se fazer, o jeito é apelar para os esportes radicais mesmo. Mas voltando à causa, o juiz extinguiu o processo sem exame do mérito, acolhendo a nossa preliminar de ilegitimidade passiva ad causam, e ainda aconselhou o advogado da outra parte a ler a brilhante peça de contestação que nós fizemos (porque eu sou modesto, tá ?), bem como as provas acostadas à mesma, antes de tomar qualquer outra providência (até para este advogado aprender como é que se faz uma peça processual decente, porque a dele só serve para forrar gaiola de passarinho).
A petição inicial do advogado da demandante. Nossa, que peça grotesca!!! Com erros primários de português, mal estruturada e, ainda, contendo pérolas como: "a autora foi tratada com desumanidade, como nenhum ser humano merece ser tratado".
Após meia hora de audiência - mais relaxados, porém não menos cansados - enfrentamos o caminho de volta, chegando em Maceió por volta das 16 horas.
Que audiência interessante, uma aula. Mas quanto a distância,é bom saber que não é só o Amazonas que possui lugares extremamentes longes.
ResponderExcluirDiogo, visitei seu blog por sugestão do Dr Gino. Morri de rir em vários posts, mas a melhor foi a expressão "atravessar a calcinha". Nunca tinha ouvido ou lido alguém se referir dessa forma ao nosso mapa. Parabéns pelo blog. Agora serei leitora fiel e ainda darei a dica no próximo MPF ALô. Bjs Luiza Barreiros
ResponderExcluirHehehehehe de fato, é a realidade... Mas aqui em SP, especialmente no interiorzinho, encontramos "gemas" semelhantes. Abraços, Daniella
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