terça-feira, 26 de maio de 2009

Solenidade de Posse dos Desembargadores do TJ/AL: Discurso de Tutmés Airan

Discurso do Desembargador Tutmés Airan na solenidade de posse no Tribunal de Justiça de Alagoas, na sexta-feira, dia 22/05. Tutmés ocupou a vaga destinada aos advogados e foi escolhido, inicialmente, pelo voto dos advogados, para integrar a lista tríplice. A escolha definitiva coube ao Governador do Estado. Além de ter sido advogado, Tutmés leciona na Universidade Federal de Alagoas. Fundou a Defensoria Pública do Estado e já ocupou o cargo de secretário estadual de Justiça e Cidadania. A escolha do nome de Tutmés muito honra a classe dos advogados alagoanos e é uma vitória para toda a população alagoana, uma vez que além da sabedoria, o mestre é uma pessoa dotada de uma sensibilidade sem igual. E desde seu ingresso no TJ/AL, já mostrou a que veio. Suas posições, sempre bem fundamentadas, destoam da tradição do “voto lagartixa” daquela Corte.

Circula nos corredores do fórum uma anedota que, à guisa de perguntar a diferença entre um juiz e um desembargador, responde que o primeiro pensa que é Deus e o segundo tem certeza que o é.

De certo modo esta anedota tem alguma razão de ser. É que nós, juízes e desembargadores, consciente ou inconscientemente nos afastamos do povo, que nos paga os salários e cujo destino depende, em boa medida, de nossas decisões.

Em conseqüência, quase sempre somos vistos ora como homens inatingíveis, ora como homens poderosos o suficiente para lhes fazer mal, ora como privilegiados.

Que fale a história.

Nos séculos XVI e XVII ser juiz era uma das formas de ascender à nobreza ou de gozar de algumas curiosas imunidades como àquela, prevista nas Ordenações Filipinas, que proclamava:

"Achando o homem casado a sua mulher em adultério, legitimamente poderá matar assim a ela como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador ou pessoa de melhor qualidade."

Além do privilégio, a nossa imagem também sempre esteve associada à idéia de que somos muito poderosos. A história, novamente, não nos poupa.

Quem ordenou o calvário e a morte de Jesus Cristo? Quem condenou Galileu e Copérnico à fogueira? Foram juízes! Juízes que, quase sempre, não passaram de servos da Lei, verdadeiros "seres inanimados", limitados, como certa vez exigiu Montesquieu, à condição de "boca que pronuncia a sentença da Lei".

De algum modo, pois, sempre estivemos, em nome da Lei, contra os homens que marcaram e transformaram o mundo, no mais das vezes, como diria Hungria, reduzidos ao papel de esponja, que só restitui a água que absorve, construindo uma parede de preconceitos jurídicos, que tapam as janelas para a vida, pondo-nos de joelhos diante dos códigos, como se fossem livros sagrados de alguma religião cabalística.

De fato somos e nos conservamos poderosos. Afinal, uma simples assinatura nossa pode trazer felicidades ou infelicidades, na medida em que, como certa vez disse Calmon de Passos, "o Direito tem a fragilidade de ser linguagem e a perversidade de ser decisão". É exatamente por isso que um bom juiz não pode ser, "indiferente às aventuras do mundo", como se o processo sob sua responsabilidade não passasse de um amontoado de papéis sem vida pulsante por traz dele.

Se fosse assim, não se precisaria de juízes. Para julgar os conflitos humanos bastaria uma espécie de super computador em cuja memória se armazenasse todas as leis possíveis: dado o caso real ele daria, certamente com muito menos custo e muito mais rapidez, a solução.

Por que, no entanto, um computador, por mais sofisticado que seja, jamais substituirá o homem juiz? O que o homem juiz tem que a máquina jamais terá?
Embora seja, segundo Hegel, o animal que erra, o homem é, também e, sobretudo, o animal que se emociona e, emocionado, sabe distinguir a justiça da injustiça, a sensibilidade da indiferença.

Afinal, como magistralmente ensina Kant: "A inteligência, a fineza, a faculdade de julgar e os demais talentos do espírito, qualquer que seja o nome pelo qual os designemos, ou então a coragem, a decisão, a perseverança (...), como qualidades do temperamento, são, sem dúvida nenhuma (...) coisas boas e desejáveis; mas esses dons da natureza também podem se tornar extremamente ruins e funestos, se a vontade que deve utilizá-los, cujas disposições próprias chamam-se por isso caráter, não é boa" (Kant, Fundamentos da Metafísica dos Costumes)

Em outras palavras, isto quer dizer que no trabalho cotidiano de julgar os conflitos humanos não basta apenas o conhecimento técnico adquirido.

É preciso mais, muito mais: é preciso colocar o poder que o conhecimento oferta aos juízes para fazer bem as pessoas, se dispondo sempre a ouvi-las, dividindo com elas as suas angústias e incertezas fazendo, enfim, de nossos gabinetes um espaço que sirva para mostrar a elas que estamos de portas abertas, ao alcance delas, porque somos tão humanos e honestos quanto elas.

Ser um juiz assim, é uma exigência ética inadiável, de um poder que ou assume de vez o fato de ser republicano - e ser republicano é ser transparente e popular - ou estará sempre sendo objeto de desconfianças e suspeitas, fazendo, por exemplo, atuais a ácida crítica feita pelo poeta Gregório de Matos há quatro séculos, acerca do aparelho judiciário de então: Que falta nesta cidade? Verdade Que mais por sua desonra Honra Falta mais que se lhe ponhaVergonha.(...)E que justiça a resguarda?Bastarda É grátis distribuída? Vendida Quem tem, que a todos assusta?Injusta.Valha-nos Deus, o que custa,O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, Vendida, Injusta

Gregório de Matos era conhecido como "boca do inferno", pelas suas contundentes e corajosas denúncias às autoridades de sua época. Hoje, até pelo legítimo papel da boa imprensa, os "bocas do inferno" se multiplicaram, de modo que ou aprendemos com a história, nos fazendo transparentes e populares, ou, então, o preço a pagar será muito alto.

O recente escândalo denunciado por meio de um semanário local é a melhor prova disso, a prova de que precisamos ser transparentes! Por que juízes e desembargadores estão sendo acusados, e desde já julgados e condenados, por recebimentos de verbas supostamente indevidas? Por que reconhecidos homens de bem que compõem este Tribunal e a magistratura alagoana - que não são poucos - tiveram seus nomes jogados na lama?
A resposta é uma só, senhores: a resistência desta instituição aos princípios republicanos e aos controles democráticos, resistência, inclusive, nacional, e que acabou por fazer surgir, em boa hora, o Conselho Nacional de Justiça, que, apesar de eventuais equívocos, é um belo exemplo.

De minha parte, quero dizer que jamais imaginei um dia ser juiz. Mas, já que a vida me reservou esta surpresa, devo fazer jus a missão que ora, solenemente, recebo. Para isso, tentarei julgar cada conflito como se fosse único, sem perder nunca a capacidade de me indignar e de transformar a indignação em justiça, com o olhar do humanista que sou e do advogado que com muito orgulho fui. Para isso, enfim, assumo o compromisso de ser um juiz republicano.

É um sonho?

Talvez! Platão já dizia que "há três espécies de homens: os vivos, os mortos e aqueles que andam sobre o mar. Estes são os imprescindíveis."

É preciso, pois, muitas vezes tentar andar sobre o mar, contra toda e qualquer resistência ou dificuldade. Por isso devemos sonhar, desde que, como diria Lenin, sejamos capazes de acreditar nesse sonho e de realizá-lo, escrupulosamente.

Para um menino de Arapiraca que um dia sonhou em ter um rádio de pilha para ouvir os jogos de futebol do seu time de coração, já é um avanço enorme. Que eu esteja a altura dele.

Obrigado.

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